segunda-feira, 2 de junho de 2008

SEGURANÇA PÚBLICA O QUE FAZER

Segurança Pública: o que fazer?
Luiz Eduardo Soares
(Visiting scholar na Columbia University e no Vera Institute of Justice)

O observador atento e sensível sente-se impotente ante a magnitude do problema brasileiro da violência, da criminalidade, da insegurança. Sobretudo nas grandes cidades, os números que sintetizam a contabilidade mórbida são tão assustadores, que o cidadão de bom senso sente-se esmagado, íntima e objetivamente derrotado. Esses sentimentos conduzem ao ceticismo, à paralisia ou à intensificação da demanda por ordem autoritária, na ilusória suposição de que a violência da polícia aumentaria sua eficiência e de que leis draconianas fariam o milagre de nos trazer a paz.
O comportamento da maior parte dos políticos, no Governo ou no Parlamento, não tem ajudado. Os conservadores sempre tiveram fortes convicções sobre como enfrentar o problema da segurança pública e sempre defenderam que se fizesse mais do mesmo: as polícias podem ser as mesmas, sua forma de organização pode ser preservada, desde que sejam mais duras no combate ao crime e melhor equipadas para o confronto bélico. O ideal jamais explicitado, mas tacitamente compartilhado à direita do espectro político, costumava ser: isolam-se as hordas empobrecidas com um cinturão sanitário cripto-militar para que a cidade dos incluídos celebre os benefícios da sociabilidade harmoniosa. O modelo não funciona mais. A estratégia territorial e as práticas discriminadoras fazem água por todo lado. O cerco e a brutalidade policial tornaram-se incapazes de garantir os efeitos disciplinadores de nosso apartheid. É verdade que a velha retórica salpicada de ódio e estigmas tem sobrevivido ao colapso de seu sentido prático. No entanto, apesar dessa sobrevivência puramente oportunista e demagógica, até os conservadores mais sensíveis já se dão conta de que a aposta na discriminação e na barbárie policial só serviu para estender e aprofundar a barbárie, projetando-a sobre o conjunto da sociedade, fazendo-a atingir todas as classes sociais, indiscriminadamente, e com velocidade epidêmica. Até mesmo os tradicionais defensores de posturas duras e unilateralmente repressivas já percebem que os métodos que defenderam e aplicaram conduziram à degradação das instituições policiais e à deterioração de sua credibilidade. E, por óbvio, compreenderam que sem polícias razoavelmente confiáveis, disciplinadas e organizadas, sob controle do poder público e a supervisão da sociedade, suficientemente honestas para serem capazes de operar segundo regras institucionais e princípios legais, nenhuma política de segurança digna deste nome, dotada de um mínimo de racionalidade e consistência, poderá ser posta em prática e, portanto, terá alguma chance de dar certo.
Em resumo, até mesmo os conservadores já reconhecem ou começam a reconhecer que: (1) ou a segurança pública existirá para todos ou não existirá para ninguém, por mais que as elites se protejam com grades, cães e profissionais da segurança privada; (2) é inviável pensar em segurança pública sem polícias que funcionem, isto é, que deixem de ser parte do problema e passem a ser parte da solução; (3) polícias que funcionam são as que se organizam segundo modelos racionais de gerenciamento e que operam com base em informações sistemáticas, diagnósticos rigorosos, planejamento e avaliações regulares, dispondo dos equipamentos e da tecnologia correspondentes ao tamanho das responsabilidades; (4) e, finalmente, para que elas não sejam capturáveis pelas dinâmicas criminais e não se convertam em cúmplices do crime organizado, é preciso que se submetam a códigos de comportamento institucionais compatíveis com as leis que têm a obrigação de fazer cumprir. Isso exige controle externo, participação da sociedade, o que, por outro lado, serve à reconstrução da credibilidade. Nesse sentido preciso, eficiência policial e respeito às leis e aos direitos humanos seriam faces da mesma moeda. Em outras palavras, creio que até mesmo os conservadores mais refratários ao discurso dos direitos humanos tendem a se aproximar do ponto em que se renderão à necessidade de incorporá-lo, em nome da civilização, no Brasil.
À esquerda do espectro político, o quadro não tem sido mais animador, a despeito das boas intenções. Contudo, a crise atual também aponta para avanços significativos. Tradicionalmente, políticos de esquerda e militantes dos direitos humanos temos sido muito bons na denúncia e na crítica, mas pouco eloquentes na apresentação construtiva de propostas para uma política alternativa de segurança pública. Creio que isso se deveu, sobretudo, à nossa visão da criminalidade e da violência interpessoal como meros sintomas e consequências de causas profundas, que residiriam nas estruturas sócio-econômicas injustas e opressivas. Essa concepção nos levou a subestimar a segurança pública como uma questão específica e dramática em si mesma, que exigiria enfrentamento também específico e urgente, quaisquer que fossem suas causas profundas. Até hoje, as relações entre economia, estruturas sociais, violência e criminalidade são matéria controversa e, em temas assim complexos, diferentes posições são legítimas. No entanto, ainda que criminalidade e violência fossem apenas sintomas (no que, pessoalmente, não creio, ainda que eu esteja longe de negar a importância de condicionantes sócio-econômicos e culturais), deveríamos atentar para o fato de que sintomas, às vezes, matam o paciente. Ou seja, independentemente das demais políticas cujos focos são estruturais e sem prejuízo de que se lhes atribua toda a importância que merecem, é indispensável e inadiável saber o que fazer com as polícias, com a situação caótica de nossa (in)segurança pública, com a criminalidade, com o medo que se espalha, realimentando preconceitos, aprofundando divisões sociais e injustiças, e até mesmo com os efeitos destrutivos que a falta de segurança provoca sobre a economia.
Em outras palavras, as esquerdas e os militantes dos direitos humanos defrontam-se, hoje, com um quadro que lhes impõe a atenção ao outro lado, sempre negligenciado, da moeda dos direitos humanos: a eficiência policial. Nenhuma política de segurança voltada para o respeito aos cidadãos será viável sem que haja as condições institucionais indispensáveis ao exercício de qualquer política. E tais condições incluem organização administrativa racional, sistematização na coleta, difusão e análise de dados, produção de diagnósticos, planejamento e monitoramento regulares, requalificação profissional, mecanismos de controle interno e externo, etc… Ou seja, assim como os conservadores começam a se aproximar de uma nova forma de definição do desafio da segurança pública, em cujo contexto a questão dos direitos humanos tenderá a se impor como uma dimensão inescapável da eficiência sistêmica desejada, as esquerdas já se movimentam rumo à revalorização da segurança pública, agora entendida como uma problemática relevante, o que as conduzirá ao reconhecimento de que a eficiência policial é uma dimensão intrínseca ao exercício de qualquer política de segurança comprometida, na prática, com os direitos humanos.
Se essa interpretação está correta, a crise de insegurança que atravessamos pode estar servindo à reconstrução de nossa cultura cívica e política, aproximando visões opostas, superando dicotomias empobrecedoras, transcendendo polaridades reducionistas, e, quem sabe, criando as condições para uma futura coalizão contra a barbárie e pela civilização, no Brasil.
Versão inicial do segundo texto para República:
Dependendo do ângulo de observação, o problema da segurança pública no Brasil parece inabordável. Vejam bem, não digo insolúvel: a impressão provocada pelo tamanho do desafio é tão desproporcional às nossas forças, que não conseguimos nem mesmo abordá-lo, isto é, descrevê-lo de um modo ordenado –o que seria o primeiro passo para identificarmos o que é prioritário, em meio ao oceano de dificuldades, definirmos uma metodologia de enfrentamento e, quem sabe?, uma estratégia, se não de solução, pelo menos de relativo controle. Claro, é compreensível a dificuldade, seja pelas dimensões realmente assustadoras de nossa insegurança, sobretudo em algumas grandes cidades, seja pelos erros que o setor público acumulou nesse campo.
No entanto, estou convencido de que o problema da segurança, essa pedreira aparentemente intransponível, pode ser enfrentado com chances razoáveis de êxito, se soubermos abordá-lo. Acredito que seria necessário, para uma abordagem adequada, compreender dois pontos: (1) por mais relevantes que sejam as causas sócio-econômicas e sem prejuízo do reconhecimento quanto à urgência de investimentos nessa área, deveríamos considerar que o fenômeno epidêmico da criminalidade, em sua multiplicidade, requer diagnósticos específicos e tratamentos igualmente específicos; (2) quaisquer que sejam esses tratamentos, para aplicá-los será preciso dispor de instrumentos institucionais, isto é, de agências de segurança pública, entre as quais se destacam, por sua centralidade funcional, as polícias. Em outras palavras, é necessário (1) formular políticas de segurança e (2) contar com instituições policiais capazes de aplicá-las.
Tudo isso é simples, até mesmo trivial, na teoria. Porém, na prática, é bastante complicado, porque a situação caótica que vivemos impede tanto a formulação de políticas consistentes, quanto sua aplicação. Por algumas razões elementares: só há política se houver diagnóstico, isto é, uma compreensão rigorosa da realidade que se deseja modificar; e só há diagnóstico se houver dados confiáveis, informações de boa qualidade, coletadas e organizadas de modo sistemático. Por outro lado, sem política, sem planejamento, sem a identificação de metas e meios de alcançá-las, é impossível avaliar resultados e desempenhos. Ocorre que, sem avaliação, torna-se inviável descobrir os erros e preparar-se para não repetí-los, ou seja, torna-se inviável monitorar o processo, corrigí-lo, aperfeiçoá-lo, acumulando experiências, amadurecendo, evoluindo. Sem dados qualificados, diagnósticos racionais, planejamento e avaliações regulares, as ações e agências da segurança pública perdem a razão e a memória. Viram autômatos amnésicos, verdadeiros zumbis coletivos, correndo atrás dos fatos consumados, sem agilidade e capacidade adaptativa. Condenam-se a agir sem inteligência estratégica e renunciam às intervenções preventivas. Por isso, o que se costuma chamar, no Brasil, política de segurança, com frequência, não passa de movimentos reativos e fragmentários das máquinas institucionais pavlovianamente treinadas e estruturadas para apagar incêndios, correr atrás do leite derramado e responder, mal e lentamente, às demandas socialmente mais visíveis e às tragédias que mais mobilizam a opinião pública.
Há, portanto, no fundo dessas deficiências, uma unidade: são as estruturas organizacionais das polícias que não estão funcionando. Afinal, a falta de rotinas adequadas e de treinamento apropriado, a carência tecnológica, a debilidade administrativa, a corrupção, o cotidiano desrespeito aos direitos humanos e a consequente falta de confiança da sociedade, produzem um duplo resultado: a ausência de informações –que torna impossível, em última instância, a formulação de políticas—e a inexistência dos meios indispensáveis à aplicação das políticas –se elas existissem. Sendo assim, a reforma das polícias é a pré-condição inescapável para que políticas de segurança sejam elaboradas e aplicadas, quer dizer, testadas, substituídas e aperfeiçoadas. Essa reforma teria de incidir sobre três pontos, correspondentes aos três focos da irracionalidade e da inépcia operacional: (1) modernização gerencial e tecnológica (indissociável da requalificação dos policiais e da integração entre as polícias civil e militar), para que se possam criar os elos: informações (coleta, produção, processamento, difusão e comunicação), diagnósticos, planejamento, avaliação e monitoramento; (2) moralização (que supõe o estabelecimento de novos mecanismos de controle interno e externo, como a ouvidoria, além de indução positiva através da valorização profissional); e (3) participação comunitária, pois sem transparência e engajamento social, o processo de reforma será incapaz de reconstruir a credibilidade institucional que as polícias, de um modo geral, perderam, no Brasil. Essa é uma agenda básica para começarmos a enfrentar, com mais eficiência, a violência e a criminalidade, sem ilusões românticas, mas com a convicção de que é perfeitamente possível melhorar, e muito, nossa realidade.

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