quarta-feira, 16 de julho de 2008

O crime militar praticado por militar estadual e seus requisitos


O crime militar praticado por militar estadual e seus requisitos

1. INTRODUÇÃO
À primeira vista parece fácil, mas você sabe identificar com segurança se uma conduta delituosa praticada por militar estadual é crime militar ou comum? Pode-se pensar que não há dificuldade em se fazer tal distinção, porém, a resposta não é tão simples. Freqüentemente, Delegados de Polícia instauram inquéritos policiais para apurarem crimes militares e Promotores de Justiça requisitam instauração de inquérito policial militar para apuração de crime comum ou oferecem denúncia por prática de crime comum, quando, na verdade, se trata de crime militar. Isso ocorre, geralmente, porque as normas militares abarcam conceitos e valores muito restritos à vida na caserna e tutelam bens jurídicos sui generis, atinentes à regularidade das Instituições militares, como a autoridade, a hierarquia e a disciplina. Dessa forma, a tarefa de identificação do crime militar torna-se mais complexa que a identificação de um crime comum, uma vez que requer uma tipificação qualificada. A esse respeito, Julio Fabrini Mirabeti(1) desabafa que “é árdua, por vezes, a tarefa de se distinguir se o fato é crime comum ou militar”. Dado ao exposto, sem a pretensão de se esgotar o assunto tratado, este texto foi elaborado com intuito de facilitar a identificação do crime militar cometido por militar estadual e, consequentemente, dar um passo prático para divulgação e entendimento do Direito Militar, que é um ramo do direito de compreensão obrigatória aos que estudam ou trabalham com segurança pública. 2. ASPECTOS GERAISInicialmente, convém salientar que, dentre suas várias facetas, o Direito Penal Militar tem uma característica marcante: ele é aplicado em duas esferas, quais sejam, em âmbito federal (tendo como sujeito ativo os militares federais e civis e como bem tutelado a regularidade das Forças Armadas) e em âmbito estadual (que tem como agente ativo somente os militares estaduais em detrimento dos bens das Instituições militares estaduais). De tal modo, apesar de as normas penais militares aplicadas aos dois tipos de militares serem as mesmas - Decreto-Lei 1.001, de 21/10/1969 (Código Penal Militar - CPM), e o Decreto-Lei 1.002, de 21/10/1969 (Código de Processo Penal Militar - CPPM) -, suas especificidades, em muitos casos, são bastante diferentes. Nessa esteira, observa-se que o civil pode cometer crime militar contra as Forças Armadas, mas não pratica tal delito contra as Organizações Militares dos Estados, pois à Auditoria Militar só compete julgar o militar estadual, nunca o cidadão comum(2). Isso se dá por mandamento Constitucional, qual seja, o artigo 125, §4º, que prescreve que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares, definidos em lei, não havendo, pois, menção ao julgamento de civis. Em contrapartida, o artigo 124 da CF estabelece competência para Justiça Militar federal julgar os crimes militares, pouco importando quem seja o autor, civil ou militar.O crime militar é definido por Célio Lobão como a infração penal prevista na lei penal militar que lesiona bens ou interesses vinculados à destinação constitucional das instituições militares, às suas atribuições legais, ao seu funcionamento, à sua própria existência e - no aspecto particular da disciplina e da hierarquia - da proteção à autoridade militar e aos serviços militares(3). Demais disso, renomados autores dividem o delito militar em crime propriamente militar e impropriamente militar - divisão que encontra eco na própria Constituição Federal, art. 5º, LXI, que excepciona a necessidade de flagrância ou de ordem da autoridade judiciária competente para a execução de prisão com relação aos crimes propriamente militares.Sinteticamente, pode-se conceituar os crimes propriamente militares ou crimes militares próprios como aqueles previstos somente no CPM e que exigem do agente a condição de militar. Nas palavras de Sílvio Teixeira Martins(4), são “aqueles cuja prática não seria possível senão por militar, porque essa qualidade do agente é essencial para que o fato delituoso se verifique”. É o caso, por exemplo, dos crimes de deserção, motim, de violência contra superior, de violência contra inferior, de recusa de obediência, de abandono de posto, de conservação ilegal do comando etc. Vale lembrar que o crime de insubmissão, que só pode ser praticado por civil, mesmo que só previsto no código castrense, é uma exceção à regra. Os crimes impropriamente militares são aqueles previstos tanto no CPM quanto no Código Penal comum (CP), que, comuns em sua natureza, podem ser praticados por qualquer cidadão, civil ou militar, mas que, quando praticados em certas condições, a lei os considera militares. Jorge César de Assis(5) conceitua os crimes militares impróprios como aqueles que são definidos no CPM e no CP e que, por um artifício legal, tornam-se militares por se enquadrarem em uma das várias hipóteses do inc. II do art. 9º do Diploma Militar Repressivo. Neste sentido, são impropriamente militares os crimes de homicídio, lesão corporal, os crimes contra a honra, contra o patrimônio, o tráfico de entorpecentes, o peculato, a corrupção, e a falsidade, dentre outros. Note-se que tais crimes também estão previstos no CP comum, sendo que a diferença está justamente na subsunção ao artigo 9º do CPM.
3. REQUISITOS
Previamente, deve-se observar que para aplicação do CPM quanto aos delitos praticados por militares estaduais e conseqüente subsunção do seu art. 9º, somente é considerado militar estadual o Policial Militar e o Bombeiro Militar em atividade(6), ainda que em gozo de licença. Deste modo, excluem-se desse rol os militares estaduais inativos (reformados e os da reserva-remunerada)(7), ressalvando-se os crimes praticados por eles antes da inatividade ou se perpetrados por inativo devidamente convocado para o serviço ativo, pois, neste caso, restabelece-se o vinculo com a instituição militar, oportunidade em que o inativo equipara-se a ao militar ativo para fins de aplicação da lei penal militar. No que tange à conceituação do crime, saliente-se que, material ou substancialmente, crime é definido como lesão, ameaça de lesão ou exposição a perigo a um bem fundamental (que mereça tutela penal) para coexistência e o desenvolvimento social. Formalmente, o crime é a conduta descrita em lei para o qual se comina uma sanção penal. E, adotando-se a concepção analítica tripartida do delito, tem-se que uma conduta, para ser considerada crime, deve ser típica, antijurídica e culpável. Ademais, para ser considerada como um delito militar, ela tem que se amoldar a uma das situações prescritas pelo artigo 9º do CPM.O referido artigo é subdividido em três incisos, contudo, devido ao tema focado, somente as alíneas do inciso II, que tratam das hipóteses em que o militar estadual pode cometer crime militar, serão analisadas a seguir. Desse modo, o inciso I, que trata do crime propriamente militar, e o inciso III, que trata especificamente do militar inativo como sujeito ativo do crime militar, não serão abordados.Quanto à aplicação da letra ‘a’ do inciso II do art. 9º do CPM (militar em situação de atividade contra militar na mesma situação) importa salientar que a prática de qualquer crime tipificado Código Castrense nessas condições abarca as condutas delitivas praticadas por militares no serviço ativo, estando ou não de serviço qualquer dos dois ou sendo de Corporações de Estados Federados distintos(8). Com relação aos delitos envolvendo militares federais e estaduais entre si, não ocorre a subsunção da conduta à referida alínea ‘a’, pois na caracterização do delito militar, o militar estadual é considerado civil para efeitos de aplicação do CPM frente à Justiça Militar federal, enquanto que o militar federal é considerado civil para efeitos de aplicação do CPM frente à Justiça Militar estadual. Conseqüentemente, não é crime militar a prática de delito por um militar estadual contra um federal e vice-versa, afastando-se a referida hipótese(9). Não se deve esquecer, porém, que o crime militar, no aspecto federal, com tais sujeitos pode ocorrer em outras hipóteses elencadas pelo art. 9º do CPM.A letra ‘b’ do inciso II do art. 9º do CPM dispõe que é crime militar o delito praticado por militar em local sob a administração militar contra civil ou inativo. O local sob administração castrense pode ser definido como aquele que pertence ao patrimônio das Forças Armadas, das Corporações Militares Estaduais ou que se encontra sob a administração dessas instituições militares por disposição legal ou ordem da autoridade competente, podendo ser móvel ou imóvel. Por conseguinte, se o policial militar ou bombeiro militar na ativa praticar qualquer dos crimes previstos no CPM, em local sujeito à administração de uma Corporação Militar Estadual, mesmo estando de folga ou licença, sua conduta subsume-se ao referido inciso. Saliente-se que os postos destacados das Policias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, bem como o interior de suas viaturas, aeronaves e embarcações, são locais considerados sujeitos à administração militar para fins de aplicação do CPM. Com relação à alínea ‘c’ do inciso II (militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito a administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou civil) verifica-se que há expressões que carecem ser conceituadas a fim de se compreender melhor o alcance da referida norma. Militar em serviço é o exercício da função do cargo militar, decorrente da lei ou ato administrativo, tendo-se em conta que o ato verbal – a ordem – necessita de suporte legal; e atuando em razão da função se confunde como o dever jurídico de agir, previsto no art. 301 do Código de Processo Penal e 243(10) do CPPM. Assim, se o militar estadual atuar em razão da função, mesmo que de folga, incide na referida alínea; noutro giro se, em serviço, não atuar no desempenho de suas atribuições legais, não cometerá crime militar abarcado pelo referido requisito.Cumpre lembrar que o conceito de militar em serviço é diferente de militar em situação de atividade, na ativa ou no serviço ativo (tais expressões referem-se aos militares incorporados às Instituições militares). Como exemplo desta diferenciação, o professor Célio Lobão(11) destaca que, embora em serviço ativo, o militar afastado da função do cargo militar, que é o caso do militar agregado por haver tomado posse em cargo ou função pública temporária não eletiva, quando agindo no exercício da função civil comete delito, esse crime será considerado comum, porquanto o serviço não tem o caráter ou a natureza militar(12). De igual forma, o militar que abandonar o posto e cometer crime nesse período, em local não sujeito à administração militar ou contra outro militar estadual, mesmo permanecendo em situação de atividade, não permanece em serviço, portanto não comete crime militar(13). Os requisitos citados na letra ‘d’ do inciso II (militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil) são espécies do gênero serviço, mencionados na alínea ‘c’; portanto, assemelham-se em sua aplicação à referida alínea do art. 9º. Contudo, visando especificar melhor os termos ali mencionados, convém aclarar que período de manobra entende-se como sendo o espaço temporal compreendido entre o aprontamento da tropa até sua liberação(14). Exemplificando essa situação, tem-se a entrada em forma de uma tropa da Polícia Militar em local de evento, para se contabilizar faltas, transmitir ordens, distribuir o efetivo nos locais predeterminados etc., até sua colocação em efetiva atividade. E o termo exercício pode ser entendido como adestramento ou treinamento de atividades específicas da tropa como, por exemplo, uma simulação de fuga em presídio ou adentramento em entrada de local de cativeiro. Assim, o militar estadual que, durante período de manobras ou exercício, atentar criminalmente contra inativo ou civil, cometerá crime militar por força da referida alínea ‘d’.O vocábulo patrimônio sob a administração militar, citado na alínea ‘e’ do inciso II (militar em situação de atividade contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar), é entendido como o bem que pertença ou esteja legalmente sob a administração de uma instituição militar. E a expressão ordem administrativa militar é compreendida como a organização administrativa, existência e finalidade dos órgãos militares, bem como seu prestígio moral. Dessa forma, o militar estadual ativo que perpetrar conduta delituosa definida no CPM contra o patrimônio sob a administração das Corporações Militares Estaduais ou contra sua ordem administrativa, incorrerá em crime militar. In exemplis, o policial militar que causar dano ou furtar bem de sua Instituição incidirá na primeira parte da referida alínea e aquele que prevaricar ou praticar corrupção ativa ou passivamente incorrerá na segunda parte. Outro ponto vital a ser analisado na subsunção de uma conduta ao tipo penal militar, mesmo se atendidos os requisitos já mencionados, é a questão dos crimes dolosos contra vida (homicídio, tentativa de homicídio etc.) praticados por militares estaduais contra civis, pois são da competência jurisdicional da Justiça Comum – tribunal do júri, conforme se verifica no parágrafo único do art. 9º do CPM (inserido pela Lei nº. 9.299/96). Ocorre que, mesmo que esses crimes tenham tido deslocamento de competência jurisdicional, eles continuam sendo crimes militares impróprios; por conseguinte, alterou-se apenas a jurisdição. No que se refere à apuração por inquérito policial militar, a competência continua da Polícia Militar ou Bombeiro Militar, seguindo-se o mandamus do artigo 8ª, ‘a’, do CPPM(15). Assim, é evidente que compete à Instituição militar estadual apurar os crimes militares cometidos por seus integrantes(16).Por fim, convém mencionar que, com a entrada em vigor da Lei 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais para o julgamento de infrações penais de menor potencial ofensivo, em muitos Estados da Federação começou-se a aplicar a Justiça Militar os procedimentos trazidos pela referida Lei, mesmo havendo a vedação à sua aplicação em caso de crimes com previsão de procedimento especial. Criou-se, então, uma discussão sobre a aplicação ou não dos novos institutos aos crimes militares. Porém, pondo fim a essa questão, em 27/09/1999 foi publicada a Lei 9.839/99, inserindo na Lei 9.099/95 o art. 90-A, que proibiu expressamente sua aplicação no âmbito da Justiça Militar. Logo, não se aplicam aos crimes militares os institutos trazidos pela Lei 9.099/95, tais como a lavratura do Termo Circunstanciado, ao invés do Auto de Prisão em flagrante, e a suspensão condicional do processo.
4. CONCLUSÕES
Verifica-se que, na definição do crime militar sob o aspecto estadual, devem estar presentes dois pressupostos: um de ordem objetiva (especificação em lei) e outro de ordem subjetiva (qualidade do sujeito ativo de militar estadual). Assim, para se caracterizar uma conduta como crime propriamente ou impropriamente militar, praticada por militar estadual, faz-se necessário preencher três requisitos: sua tipificação no Código Penal Militar; sua prática dentro das hipóteses dos incisos I e II do art. 9º do Código Penal Militar; e ser o sujeito ativo do delito, somente, o militar estadual em situação de atividade (na ativa ou no serviço ativo). Nessa linha de raciocínio, sob a ótica estadual, pode-se dizer que os crimes militares próprios são aqueles em que o sujeito ativo pratica a conduta delituosa atendendo aos requisitos supracitados e nas condições prescritas em cada tipo penal de per si. Isso se deve ao fato de que em cada tipo penal propriamente militar há previsão do sujeito ativo como sendo o militar, bem como as demais especificidades de cada delito, não se fazendo, pois, necessária sua combinação com as alíneas do inciso II do art. 9º do CPM, que são aplicadas na qualificação dos crimes militares impróprios. Por sua vez, os crimes militares impróprios, em âmbito estadual, são aqueles em que o sujeito ativo é militar estadual em situação de atividade e pratica a conduta delituosa atendendo as seguintes hipóteses:a) Contra ofendido igualmente militar estadual na ativa (alínea a, inciso II);b) Em local sob administração de uma Corporação militar estadual, contra civil ou inativo (alínea b, inciso II);c) Em serviço ou no exercício legal de sua função, no momento do crime, contra inativo ou civil (alíneas c, inciso II);d) Em exercício ou manobra no momento do crime, contra inativo ou civil (alíneas d, inciso II);e) Contra bem sob a administração militar ou que ofenda a ordem administrativa militar (alínea e, inciso II).Com relação aos delitos envolvendo militares federais e estaduais, nas mesmas condições, não ocorre a aplicação da letra ‘a’ do inciso II do art. 9º, pois na caracterização do delito militar, o militar estadual é considerado civil para efeitos de aplicação do CPM frente à Justiça Militar Federal, enquanto que o militar federal é considerado civil para efeitos de aplicação do CPM frente à Justiça Militar Estadual.Por derradeiro, alerte-se que, mesmo se atendidos os requisitos já mencionados, os crimes dolosos contra vida (homicídio, tentativa de homicídio etc.), praticados por militares estaduais, são da competência jurisdicional da Justiça Comum, mas não deixaram de ser crimes militares, de maneira que, cabe às Instituições militares estaduais instaurarem os competentes inquéritos policiais militares para apuração do fato.

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